sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Na véspera do réveillon 1999 um voo dramático e interminável sobre estradas congestionadas


Último dia de 1998, véspera de ano novo. Na função de repórter aéreo partimos do Campo de Marte, a bordo de um valente helicóptero modelo Robinson R-22 ao lado do comandante Décio Sammartino.

Seria aquele um sobrevoo gigante com início marcado para as 7 da manhã e sem horário para terminar. Previsão de paradas para o reabastecimento e apenas lanches, não haveria tempo para almoço ou jantar.

O Sistema Anchieta-Imigrantes estava congestionado da capital paulista até o litoral desde o pós-natal, 26 de dezembro e assim permaneceu mesmo após a virada de ano entre o dia 31 de dezembro de 1998 e 1° de janeiro de 1999.



Foram mais ou menos 16 horas de voo em um único dia. Se estivéssemos em um avião de carreira teríamos feito um voo São Paulo – Moscou.

Mas o nosso sobrevoo ficou restrito ao Sistema Anchieta-Imigrantes e mesmo a paisagem verde e exuberante da Mata Atlântica, cercada de represas entre essas duas estradas, chegou a cansar.

Tecnologia obsoleta aos olhos de hoje

Os telefones celulares eram a coqueluche do momento, mesmo sem o alcance da internet porque ainda não havia os smartphones, poder ligar de qualquer ponto, inclusive das estradas para qualquer outro lugar era algo fantástico.

Nossos ouvintes ligavam sem parar para a nossa emissora, a saudosa e hoje extinta Rádio Eldorado AM.

O objetivo era transmitir informações para os demais ouvintes e saber da extensão dos congestionamentos pelo repórter aéreo que do alto podia ver onde se iniciavam e terminavam as filas.

Na Imigrantes o congestionamento sentido litoral começava a partir de Diadema no sentido das praias e, na Via Anchieta, após Rudge Ramos em São Bernardo do Campo.

As rodovias do litoral: Padre Manoel da Nóbrega e Cônego Domenico Rangoni (Piaçaguera-Guarujá), também estavam travadas.

A recomendação que passamos a dar era que as pessoas não iniciassem sua viagem ou então, se o fizessem, com o conhecimento que enfrentariam os transtornos do trânsito parado.

Nossos ouvintes que telefonavam, mesmo avisados, insistiam em prosseguir.

Nossas estradas melhoraram observadas 20 anos depois

Em 1998, a atual pista de descida da Rodovia dos Imigrantes no trecho da serra ainda não existia.

Isso obrigava a empresa gestora do sistema a implantar um esquema chamado Operação Descida que consistia na inversão de mão da pista de subida da Imigrantes que passava a ter mão de direção no sentido das praias.

Abriam-se assim, mais três faixas rumo ao litoral, mas insuficientes para abrigar tantos carros. Naquele réveillon cerca 450 mil veículos viajaram nessas duas estradas.

Parece pouco se comparado aos dias atuais quando indicadores apontam a descida 1,2 milhão de veículos rumo às praias no Sistema Anchieta-Imigrantes que agora conta com sua pista de descida no trecho serra.

Também aumentou a demanda porque o trecho sul do Rodoanel naquele tempo ainda não existia.

A subida do litoral para São Paulo, naquele tempo, só se dava pela Via Anchieta para reclamação dos moradores de Santos que preferiam se ausentar da cidade nos dias de grande movimento.

A frota de veículos no Estado de São Paulo, no ano de 1998, estava acima dos quatro milhões e o trânsito parado era uma situação constante nas ruas, avenidas, bem como nas estradas, enfim em todos os lugares. 

De acordo com um levantamento da CET, a capital paulista tem agora uma frota circulante acima dos 8,6 milhões de veículos, ou seja: automóveis, motos, ônibus ou caminhões. Isto significa aproximadamente 7,4 veículos motorizados a cada 10 habitantes.

Ao todo nesta passagem de 2019 para 2020, cerca de 3,6 milhões de carros deixarão a capital paulista em direção de todas as estradas

Diante desses números se conclui que apesar do número de vias ter aumentado, estas seguem em número insuficiente em relação à quantidade de carros.

Especialistas dizem, no entanto, que a implantação de novas avenidas ou mais estradas não resolve completamente o problema do trânsito porque haverá sempre uma demanda reprimida.


Mas, naquele 31 de dezembro de 1998, por volta das 12 horas, o tempo estimado para a descida da capital até o litoral era de cinco horas para quem estivesse de carro, fosse na Anchieta ou na Imigrantes.

Dentro da cidade de São Paulo o trânsito se mostrava mais animador, intenso, mas fluindo bem.

A exceção ficava por conta da Avenida Paulista e do Centro, interditados em razão dos festejos oficiais de réveillon, mais a corrida de São Silvestre que naquele tempo acontecia na parte da tarde.

Em 1998, já havia telefones celulares em número bem grande e mesmo sem a internet e os aplicativos de hoje em dia, esses aparelhos se mostravam muito úteis. Tê-los era sinônimo de status tão importante quanto boas-roupas e um carro novo.


Isto reforçava a participação dos ouvintes-repórteres na programação da Rádio Eldorado AM naquele tempo.  As pessoas ligavam de todos os lugares ao telefone fixo 3277-1299 para saber ou dividir notícias do trânsito e aproveitavam para reclamar de vários assuntos.

Outros, já na estrada, reclamavam dos que se utilizavam do acostamento para fazer dele uma pista adicional ultrapassando ilegalmente os demais.  

Do helicóptero informávamos que os “espertinhos” encontrariam mais adiante uma viatura da Polícia Rodoviária que saberia dar uma punição correta aos desobedientes.

O sol foi se pondo, anoiteceu e os telefonemas continuavam chegando à nossa emissora. Pena que não guardei os nomes dos jovens jornalistas que naquele dia permaneceram horas e horas atendendo aqueles telefonemas.

Os ouvintes nem mais queriam saber se o tráfego estava parado porque essa era a informação recorrente.

Ligavam mesmo era para desabafar, utilizando o rádio como fonte de expressão de seu desalento.

“Em um momento como este, de confraternização entre as pessoas, não se poder brindar a virada de ano-novo na praia, é muito triste”, diziam os ouvintes para em seguida colocar a culpa nas autoridades que não construíam novas estradas.

Outros também sintonizados, expressavam sua ansiedade aguardando o momento de pisar na areia da praia e ver os fogos comemorativos da mudança.

Estar com os pés na água do mar, é para muitos brasileiros no ano-novo, uma tradição. Na hora da virada, dar pulinhos sobre as ondas ajudam a espantar o mal olhado se conquistando a sorte durante o ano inteiro.

Nós a bordo do helicóptero buscávamos dar uma palavra de consolo a essas pessoas e nossas entradas no ar pela rádio passaram a ser mais prolongadas naquele início de noite.

Passamos a comentar, entre uma informação e outra, a situação estressante daqueles que nos dias que antecederam o Natal, correram para as compras, os afazeres da ceia e agora quando queriam descansar não tinham nem o direito de tomar um banho de mar.

Sobrevoando uma rodovia abarrotada de carros, onde se cobra até hoje o pedágio mais caro do Brasil, utilizamos nossa palavra pelo rádio em solidariedade aos nossos ouvintes.

Pode parecer piegas dando sentido a uma espécie de pregação religiosa, mas era o que todos queriam ouvir.

Também para o comandante Décio Sammartino, o sacrifício de ter que voar tantas horas foi grande. Ele nos disse que também não se esquece daquele em que mais voou na sua carreira.


A cada nova decolagem após reabastecer, mais duas horas de sobrevoo. No ar, os ouvintes relatavam ter ficado 4 horas e meia ou mais na estrada para um trajeto de pouco menos de 80 quilômetros entre São Paulo e o Guarujá, por exemplo. Tais consequências acarretam prejuízos para o País pelo desperdício de combustível.

Cerca de 16 horas de trabalho ininterrupto no céu. Os assuntos variavam, os ouvintes agora cobravam policiamento eficaz e mais investimentos na construção ou ampliação das rodovias.

Busquei o imaginário dos ouvintes falando não só de uma nova pista para a Imigrantes, mas também para a Rodovia dos Tamoios duplicada em sua totalidade de São José dos Campos a Caraguatatuba, coisas que não existiam.

Outros pediam a estrada Mogi – Bertioga bem melhor que a existente na época, situação que quase não mudou até agora.

Como já estava escuro, com céu nublado, mas sem chuva e visibilidade satisfatória, pedi para o piloto diminuir a altura na fila da praça de pedágio da Imigrantes.

Assim as pessoas poderiam nos ver para ter a certeza de que não estavam sozinhas ou abandonadas, havia alguém preocupado com elas, o repórter-aéreo da Rádio Eldorado, cuja função era essa mesma, de prestar serviço dentro de veículo de comunicação.

De cima pedi algum sinal da parte deles para comprovar a audiência. Conseguimos ver algumas piscadas intermitentes de farol e ficamos felizes, com isso.

Anunciei nossa façanha pelo rádio e em seguida um senhor telefonou para contar que estava com a esposa e dois filhos pequenos no carro, todos presos no trânsito há mais de três horas tendo trafegado apenas dez quilômetros. Ao final ele disse que tudo parecia um grande pesadelo.

Caio Camargo, o apresentador de estúdio foi muito importante nesse dia, coordenando a entrada dos ouvintes, dando andamento à programação, apontando saídas, dando espaço aos desabafos.

No ar anunciou por volta das 20 horas que a previsão ainda é de tráfego ruim ainda sem prazo de solução e passa a alertar para possibilidade das pessoas passarem a virada do ano paradas na estrada.

Nosso âncora informava para os ouvintes que, se porventura estivessem pensando em retornar sem concluir o trajeto às praias que o fizessem, porque no dia seguinte haveria melhores condições de tráfego para uma viagem mais tranquila e que talvez fosse melhor assim. 

Mesmo assim os ouvintes continuaram ligando para dizer que não iriam arredar pé. “Voltar atrás depois de tanto sacrifício? Prefiro ver no que isso vai dar, disse a maioria”.

Teimosia, masoquismo, arrogância? Como explicar tal comportamento? Coisas do povo.

Tal ideia me fez imaginar o título para um filme de aventuras: “Retroceder nunca, desistir jamais”.

No purgatório à espera do paraíso, analogia que fazia sentido

A situação estava se tornando dramática também para nós funcionários da Rádio Eldorado. Tínhamos também os nossos compromissos familiares, mas o que fazer?

A decisão unânime foi anunciada no ar por Caio Camargo, a de continuar trabalhando e informar sobre as novidades até quando desse.

Do helicóptero em sobrevoo já víamos abaixo de nós os primeiros fogos do réveillon explodindo em um colorido cada vez mais intenso.

A virada de ano se aproximava com os fogos iluminando cada canto do céu embora ainda não fosse meia-noite.

O tempo se esgotava e o voo prosseguia. Perto das 23 horas, o piloto recebe o aviso que o Campo de Marte iria encerrar suas operações, o combustível também rareava, precisávamos voltar.

Retornamos à base, mas nossa equipe na rádio continuou trabalhando.

Observei do alto a cidade de São Paulo quase vazia, exceto na Avenida Paulista com milhares de pessoas acompanhando shows ao ar livre.

Quem permaneceu na capital paulista chegou sem atropelos aos seus encontros, mas para muita gente ficar em São Paulo na virada de ano não tem graça nenhuma.

Lembrei então das pessoas presas na estrada e ansiosas em chegar. De nossa parte, quase mortos de cansaço nem pensávamos mais em festa.

Antes de encerrar nossas transmissões aéreas fizemos questão de desejar aos ouvintes um Feliz Ano-Novo repleto de pistas livres para compensar aquele martírio de ficar parado sem poder sair do carro em data tão especial. 

O ano de 1999, de fato, começou com muita gente se cumprimentando em plena estrada, como se estivessem no purgatório à espera do paraíso. O congestionamento naquele 1º. de janeiro terminaria só depois por volta das quatro da madrugada.

Ao mesmo tempo aquele ano prenunciava um final de um século turbulento com falta de energia elétrica e apagões por todo o País.

Haveria depois do tão esperado e emblemático ano 2000, outra passagem de ano muita comentada. Nossa cobertura de réveillon seguinte foi a da entrada para 2001 marcando o início de um novo século. Foi também um trabalho árduo, mas abaixo do enfrentado na virada para 1999.

Novo milênio chegando

De novo as esperanças estavam renovadas, assim como agora, quando mais um ano termina e se inicia uma nova década.

Vale lembrar, certas coisas que eram usuais e modernas em 1999, hoje são obsoletas como os disquetes para computador e os aparelhos de CD Player, bem como as frequências de rádio em ondas médias.  

Alguns problemas remanescem como o trânsito sempre parado e algum novo repórter-aéreo tentando melhorar a situação de seus ouvintes ou telespectadores.

Quero assim, como naquele réveillon da passagem de 1998 para 1999, em que aconteceu o maior congestionamento que já assisti, desejar a todos do fundo do meu coração, um feliz ano-novo.

Quem sabe agora nesta década de 2020, possamos encontrar novas rotas alternativas fazendo dos nossos caminhos pela vida, trajetos de amor e de paz com qualidade de vida e menos trânsito. Feliz Ano-Novo.




2 comentários:

  1. Que fatigante , porém bela experiência? Geraldo, qdo a Eldorado encerrou suas ativi//s? Não houve necessi// de abastecer a aeronave? Havia toalete na aeronave? KKKKKK Q vc continue a nos prodigalizar com suas experiências históricas, no próximo Ano!!! Abs.

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  2. Excelente relato. Da forma como comentou parece que eu estava vivendo esse momento. Parabéns pela forma como escreve, clara e empolgante.

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