Recebi como presente de aniversário um livro enviado pelo amigo Ademir Medici cujo título é Cosmópolis, escrito pelo poeta Guilherme de Almeida. A obra é resultado de um conjunto de reportagens no formato de crônica poética sobre os bairros paulistanos, feito a pedido do jornal O Estado de S. Paulo no ano de 1929, para as edições de domingo e só depois transformado em livro.
Cosmópolis foi o nome escolhido para a coluna como forma de ressaltar a presença dos imigrantes na São Paulo do ainda jovem jornalista, escritor e poeta.
Defensor dos ideais paulistas em 1932, foi ele quem compôs o poema “Nossa Bandeira”: “Bandeira da minha terra, bandeira das treze listas,
são treze lanças de guerra, cercando o chão dos paulistas...”
Em 1962 para saudar o poeta já consagrado, a Companhia Editora Nacional, republicou a coluna Cosmópolis
para a venda em livrarias.
Guilherme de Almeida também foi advogado, crítico de
cinema, ensaísta e o compositor da belíssima letra da Canção do Expedicionário:
“...Pelos campos que eu percorra, não
permita Deus que eu morra sem que volte para lá...”
Sua morte aconteceu quando estava próximo de completar 79
anos e seu corpo está sepultado no Mausoléu do Soldado Constitucionalista de 1932, no Parque
do Ibirapuera.
Entre seus livros aparece Cosmópolis, palavra cujo significado
designa a concentração de pessoas de várias partes do mundo em um mesmo lugar. A leitura carregada de inspiração poética faz uma visita aos bairros
paulistanos de 94 anos atrás.
Tudo se transformou, a descrição impressiona por este motivo, em certos aspectos nem parece ser a mesma cidade.
Maior parte das referências apontadas perdeu-se no tempo, a quantidade de imigrantes era enorme. São Paulo abrigava não
apenas italianos ou espanhóis, mas povos de diferentes nacionalidades e de todas as partes do mundo.
Letões, estonianos, húngaros em grande quantidade e sobre
eles quase não se fala mais nada.
A Vila Anastácio, vizinha da Lapa na zona oeste, era um reduto de imigrantes do leste europeu, conforme descreve a reportagem na forma de poesia que levou o nome “Confusão báltica”.
“Esthonia
(com ‘h’?) ... Lettonia (com dois ‘tt’?) ... Lituânia (sem ‘h’?) ... Tudo confuso.
Onde? Na Europa Oriental? No Báltico? No golfo da Finlândia?... Tudo confuso. E
a confusão escura da minha geografia caminha comigo, no lusco-fusco de um
crepúsculo dúbio...”
Em 1929, ainda
se nadava nas águas do Rio Tietê em seu desenho original, sem a presença do
trânsito avassalador em suas margens.
Os
caminhos para o interior eram feitos a partir da Rua Guaicurus, sentido da Estrada
Velha de Campinas, cujo nome atual é Avenida Raimundo Pereira de Magalhães.
Guilherme de Almeida faz crítica à poluição sonora e ao cheiro forte da gasolina queimada.
“... Pelos barulhos da Rua Guaicurus, caminho de Vila Anastácio,
porta de São Paulo, bairro da gasolina. Postos claros e bombas vermelhas...
Barulho confuso, de autos, bondes e trens, sob o nariz de São Paulo – o Jaraguá
– cheirando de longe o cheiro da gasolina queimada, do ozone e da
fumação de carvão - de – pedra...” (07 de abril de 1929).
Imigrantes
húngaros estiveram em grande número no Alto
da Mooca, mas por lá ficaram reminiscências apenas dos italianos. Em “Rapsódia Húngara”, ele descreve o bairro.
“...
Rosa-dos-ventos, Alto da Mooca... aqui em cima moram todos
os ventos de São Paulo. Rua do Oratório... que não tem nenhum oratório. Uma
subida alongada, cansada... O bairro húngaro de São Paulo... (10 de março de 1929).
Os
orientais da primeira fornada de japoneses vinda ao Brasil em 1908, a bordo do navio
Kasato Maru, começa a se mudar para as ruas da Liberdade, em 1912.
A Conde de Sarzedas, rua em descida que ao final desembocava em um córrego chamado Lavapés, foi a escolhida por eles.
Hoje
canalizado resta do riozinho apenas a lembrança de seu nome, na rua que nos conduz ao Largo do Cambuci.
Acima, um trecho da crônica de Guilherme de Almeida cujo título é, “O bazar das bonecas”. E o poeta prossegue:
“...Japonerie...
uma lista de preços escrita em giz branco no quadro-negro com letras japonesas. Um avanço mais pela Rua Conselheiro Furtado e, da Rua Conde de Sarzedas, se observa os telhados pretos, velhos, tristíssimos... da Boa Morte...
No texto, a Igreja de Nossa Senhora da
Boa Morte faz parte, segundo o poeta, do bairro oriental. De pé e protegida pelo Departamento do Patrimônio Histórico, a igreja se localiza na Rua do Carmo esquina com a Tabatinguera, construção que nos remonta ao século 18.
Ele escreve: “.... Telhados da Boa Morte... Que ar de
Semana Santa, que quietude de defunto, que recolhimento de família enlutada! (17de março de 1929).
A Rua Santa Ifigênia, das lojas especializadas em produtos
elétricos e eletrônicos, é uma das marcas registradas da São Paulo de hoje durante o
dia. À noite, a clientela passa a ser outra.
Esta, por sinal, é a única referência boêmia que restou para o bairro de vida noturna agitada no passado e que se tornou não apenas decadente, mas também degradante.
O que permanece é o nome do bairro outrora repleto de bares, cervejarias e de músicas ao piano.
Santa Ifigênia, quem diria, foi uma espécie de Vila Madalena da belle époque e o local de residência dos imigrantes alemães, conforme descrição perfeita do cronista em “Chope Duplo”.
“...O
relógio alemão dos beneditinos, marcando 11 longos roncos de
bronze, encheu de fantasmas a noite... As almas seráficas dos pacientes
relojoeiros de Strasburgo, voaram das pedras bizantinas de São Bento nas notas
do cobre temperado...
Santa
Ifigênia... É o bairro dos pianos. É o bairro alemão. É o bairro do chope. Em
cada bar há um piano. Em cada piano há um alemão. Em cada alemão há um chope.
Dois chopes duplos. Vinte chopes duplos...” (24 de março de 1929).
O Bom
Retiro mantém no século 21 algumas das referências citadas em 1929. Já havia casas que vendem roupas prontas, algo não tão comum naquele tempo. O
título sinaliza as outras finalidades do bairro: “O guetto”.
“Quarta-feira
de trevas. Senti subitamente essa verdade de calendário litúrgico, quando o
automóvel atravessou uma nuvem suja, quase compacta, que subia dos trilhos para
a ponte de ferro marrom da Estação da Luz.
Treva: uma treva amarelada, com um cheiro forte de
carvão-de-pedra, e toda cortada de apitos, escapou dos dois lados da ponte,
enovelou- se no ar, caiu na rua e asfixiou o carro.
Quando a nuvem suja se esgarçou toda, puxada por um
vento quente e horizontal, já começava a tremer na tarde escura, o filme da
Rua José Paulino.
Baixa, comprida e cheia. De todos os lados, casas
de roupas-feitas, casas de móveis e pelerias.
Como eu venho do Centro, os seres que rodam pelas
calçadas, de volta do trabalho e que vão no mesmo sentido em que vou, não têm
caras e para mim têm só costas.
Costas diferentes, pequenas e grandes, claras e
escuras, rápidas e vagarosas, direitas e arqueadas...
Aquelas costas nas quais o dia bem trabalhado pesa
com uma cruz...” (31 de março de 1929).
A casa onde morou Guilherme de Almeida, na Rua Macapá - Pacaembu sobrevive. A residência foi transformada em acervo que guarda tudo o que pertenceu ao poeta.
Oito crônicas compõem o livro Cosmópolis,
as quatro restantes ficam, quem sabe, para comentários em uma próxima vez.
Postagem de 28/04/2014 para o Blog do Geraldo Nunes no
Portal Estadão. Caso possa interessar, acesse pelo google colando na hashtag o link: https://www.estadao.com.br/sao-paulo/geraldo-nunes/guilherme-de-almeida-chamava-sao-paulo-de-cosmopolis/