segunda-feira, 27 de junho de 2022

Roberto Luna: o último boêmio da Pauliceia

Boêmio sempre foi um sujeito com estilo de vida diferenciado dos padrões convencionais.

Sua preferência pela noite e a garoa no lugar do sol e da luz do dia, tinha por finalidade colocar as paixões e coisas do amor em primeiro plano.

Todo boêmio era envolvido com alguma atividade artística, fosse ela musical, literária ou de dramaturgia.

Os boêmios sempre foram pessoas errantes, aventureiras, apaixonadas por aquilo que faziam sem renunciar aos apelos vindos do coração.

Utilizei os verbos no passado porque já não há mais boêmios.

O último deles partiu neste domingo, 26 de junho, aos 92 anos.

Roberto Luna foi o último dos cantores boêmios da Pauliceia Desvairada que existiu no século 20 a se despedir de nós. Agora não há outro, não ficou mais ninguém.


Conheci Roberto Luna em um 25 de janeiro, aniversário de São Paulo pelos idos da década de 1990, na emblemática esquina da Ipiranga com a São João.

Naquele tempo o Bar Brahma ainda mantinha um “Pianos Bar” em suas dependências e Luna passou a cantar acompanhado apenas pelo pianista.

Vestimenta impecável, terno e gravata escuros em contraste com os cabelos brancos arredios já rareando.

Caminhava de mesa em mesa cantando e ao perceber que o cliente sabia a canção, aproximava o microfone para que a outra voz pudesse também ser ouvida por todos.

Sua interpretação cativante levava o público a uma espécie de catarse coletiva, contagiante e emocionada.

Sou sincero em dizer, nunca assisti a show tão intimista quanto aquele, de calar o coração para depois deixar nossa alma lavada.


Roberto Luna nasceu na cidade de Serraria, Estado da Paraíba, em 1º de dezembro de 1929.

Seu nome de batismo é Valdemar Farias, estudou em Campina Grande, onde fez os cursos primário e secundário.

Em 1945, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro onde concluiu seus estudos e passou a trabalhar como caixa em uma empresa imobiliária.

Fez escola de música e de teatro, tendo sido aluno do ator polonês naturalizado brasileiro, o grande Ziembinsky.

Pelo final dos anos 1940, passou a se apresentar como “crooner” nas boates cariocas.

O locutor Afrânio Rodrigues foi quem escolheu para Valdemar Farias o nome artístico Roberto Luna e assim ficou para sempre.

1951, é o ano que marca sua chegada a São Paulo que o deixou deslumbrado pela novidade surgida, a televisão. Seu nome está incluso na lista dos pioneiros da TV brasileira.

No ano seguinte, 1952, lançou seu primeiro disco, o bolero “Por Quanto Tempo?” e o samba-canção; “Linda”.

Foi nesta época que passou a ter um programa de rádio exclusivo: “Audições Roberto Luna”.


Houve então um incidente entre ele e o colega cantor Nelson Gonçalves que passou a andar armado para poder matá-lo.

Nelson quis acertar contas por causa de uma namorada que o deixou se dizendo apaixonada por Roberto Luna.

Este, por sua vez, se escondeu e por uns tempos não apareceu nos lugares onde Nelson Gonçalves pudesse estar.

Foram quase dois anos às escondidas até a raiva passar para que os dois amigos voltassem a se entender.


Não houve ninguém na Música Popular Brasileira do século 20, vivo ou morto, que Roberto Luna não tenha conhecido com exceção do compositor Noel Rosa.

Roberto Luna se foi e com ele fica decretado o fim da boemia nos moldes do século 20 das noites de serenatas ao lado da garoa envolvente desta São Paulo a vagar por ruas vazias das madrugadas infindas.




Uma vida recheada de emoções, canções e acontecimentos interessantes foi contada em 2008 no programa de rádio São Paulo de Todos os Tempos.

Ouça em podcast:

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Roberto Lima, o último cantor boêmio de São Paulo #131 - São Paulo de Todos os Tempos | Podcast no Spotify

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Roberto Lima, o último cantor boêmio de São Paulo #131 de São Paulo de Todos os Tempos (anchor.fm)

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Sem a presença de Walter Taverna, bairro do Bixiga corre o risco de esquecer a própria história

Fiquei triste quando soube do falecimento de Walter Taverna aos 88 anos, em maio último, depois de uma forte pneumonia.

Certamente fui o repórter que mais vezes o entrevistou, tanto que dediquei a ele um capítulo inteiro do meu livro São Paulo de Todos os Tempos Volume II, onde conto a saga de vários personagens eternos desta cidade e seus bairros.

Walter tocou adiante enquanto pôde, a tradição do Bolo do Bixiga iniciada em 1986, quando São Paulo completou 432 anos.

A festa idealizada por Armando Puglisi, o Armandinho do Bixiga, comemorava o aniversário da cidade com um bolo gigante, crescendo um metro a cada ano, na Rua Rui Barbosa.

Armandinho defensor das tradições históricas do bairro não aceitava o nome Bela Vista e dizia que a escrita deveria ser feita com i: “Bixiga”.

Walter Taverna teve uma trajetória de vida bonita, mas com acontecimentos tristes, pois assim como o menino Jesus, nasceu em meio ao cheiro dos animais, no ano de 1933.

A casa onde viviam seus pais, na Rua 13 de Maio 703, ficava nos fundos de uma estrebaria.

Quando tinha cinco anos de idade assistiu sua família ser despejada em uma véspera de Natal, 24 de dezembro. 

O proprietário da casa era seu avô, Victor Taverna, um siciliano de sangue quente que se desentendeu com o filho Carmelo por causa do aluguel atrasado.

Nervoso, mandou colocar todos os móveis do filho e sua família na rua, sem se importar com a data do aniversário de Jesus.

Desesperada, a mãe de Walter Taverna, dona Modesta, mandou cada um de seus sete filhos para a casa de um parente.

O menino Walter ficou com uma tia na Bela Vista, mas um dia chutando bola, quebrou a vidraça da sala e sua tia o mandou embora.

Sem ter para onde ir ficou perambulando pelas ruas e passou a dormir enrolado em jornais nas escadarias do Morro dos Ingleses, onde está a Praça Dom Orione.

Não faltaram oportunidades para se tornar um delinquente, ficou cinco meses dormindo na rua, até que uma outra tia que morava na Vila Mariana, ficou sabendo e lhe deu abrigo.

Tia Pepina, o colocou na escola, lhe deu carinho e assim que ficou mais crescido buscou para ele não um emprego, mas algum tipo de ofício.

Ela entrava em um estabelecimento comercial e pedia ao proprietário que ensinasse ao menino sua profissão.

Foi assim que o menino Walter aprendeu vários serviços como os de barbearia, de tapeceiro, marceneiro e cozinheiro.

Na profissão de barbeiro, como não tinha um salão, batia de porta em porta em oferecendo seus serviços.

Descobriu que havia muita gente doente ou mesmo idosa que não conseguia mais sair às ruas e passou a fazer a barba ou cortar o cabelo dessas pessoas.

Quando morria alguém no Bixiga o chamavam para dar banho, pentear e vestir os defuntos.

Ele me disse que nessas horas até gostava, “porque dava para cobrar um pouco mais pelo serviço e isso me ajudava”, explicou. 

Em 1957, ao completar 23 anos com o dinheiro que ganhava como barbeiro, alugou um apartamento na Rua Dr. Luís Barreto e chamou os pais, os irmãos e irmãs para morarem com ele.

 Certo dia, depois de umas economias, seu pai alugou um carro, colocou a mãe e quatro dos sete irmãos e foram para São Roque, ver a Festa do Vinho, mas nem chegaram lá. 

No Km 27 da Raposo Tavares, o carro em que estavam bateu de frente com um outro veículo que trafegava no sentido oposto e todos morreram. 

Depois desse desastre outras tragédias pessoais aconteceram, como a morte da primeira esposa Cleonice e de dois filhos, um deles chamado Walter Taverna Júnior, vítima de um disparo acidental de arma de fogo. 

Passado mais esse baque, casou-se novamente com dona Olga Morilha e com ela montou seu primeiro restaurante no Bexiga.

Desse casamento nasceu a filha Solange, que lhe deu duas netas e um neto que passaram a ajudá-lo na Cantina da Conchetta, na Rua Treze de Maio, 560. Olga faleceu em 2004.

Mas foi com a morte de Armandinho do Bixiga, em 1994, que ficou para Walter Taverna, a tarefa de fazer o bolo de aniversário da cidade de São Paulo e assim promover o bairro.

Walter decidiu ampliar e fez o maior pão e a maior pizza do mundo, em um deles o evento foi realizado sobre a pista do Minhocão. 

Nesta cerimônia do pão, na Rua Rui Barbosa com Conselheiro Carrão, fiz minha visita e tiramos essa foto juntos.

Em seguida criou o Centro de Memórias do Bixiga, na Rua Treze de Maio 569, quando o museu criado por Armando Puglisi, na Rua dos Ingleses, passou a ter dificuldades por falta de apoiadores.


Também para Walter Taverna faltou patrocínio várias vezes e em algumas ocasiões, chegou a colocar dinheiro do próprio bolso para que a tradição se mantivesse. 

Agora sem ele o Bixiga perde seu último guardião da memória e por isso o bairro corre o risco de esquecer sua própria história. 

A velocidade de São Paulo atropela suas próprias tradições.


 


 Tchau! Taverna.

 

 

 

 

sábado, 4 de junho de 2022

O que temos em São Paulo: Especulação Imobiliária ou Indústria da Construção? Opine: Você decide

Pessoas reclamam comigo pelas redes sociais sobre a quantidade de demolições que colocam em risco as tradições e o patrimônio histórico da cidade de São Paulo.

“Tradição não enche barriga”, também já me disseram os mais céticos.

Maior exemplo é a Avenida Rebouças, onde quem sobe de carro da Faria Lima para a Avenida Brasil assiste a uma mudança radical sem precedentes na Lei do Zoneamento Urbano, tamanha a quantidade de demolições.

Casas como a da foto e sobrados vieram abaixo para subir no lugar edifícios comercias na Avenida Rebouças. 

Aos poucos o setor imobiliário avança na direção dos Jardins até então intocado e protegido por uma Lei do Zoneamento criada pela própria Companhia City que edificou o Jardim América há mais de um século.

Novas alterações no Plano Diretor começarão a ser discutidas em julho deste ano.

No Tatuapé e no Ipiranga, por exemplo, o processo de verticalização está trazendo um novo rosto para estes bairros.

Se isto é bom ou ruim só o tempo dirá, mas faz parte de um processo que não é de agora, começou há décadas na cidade de São Paulo.

Existem os que chamam este processo de especulação imobiliária, mas o setor imobiliário se defende explicando que na verdade o que existe é a indústria da construção que gera empregos e movimenta a economia.

Em parte, isto é verdade, tudo o que se constrói para a classe média é vendido em São Paulo, embora o déficit habitacional para as famílias carentes permaneça gigantesco.

Quanto ao Patrimônio Histórico defendo a existência de um órgão único de proteção. Hoje são dois na capital paulista; Compresp e Condephaat.

Essas duas instâncias tornam burocrático demais os processos de tombamento, ao mesmo tempo em que faltam estudos sobre a viabilidade de utilização de um imóvel depois que ele é tombado.

O uso do casarão que pertenceu à família Santos Dumont, na esquina das alamedas Nothmann e Clevland foi um dos poucos casos que deu certo, embora dentro de uma região degradada como é o caso dos Campos Elíseos.


Na maioria das vezes o tombamento torna o imóvel subutilizado, foi 
o que aconteceu com o Palacete Joaquim Franco de Mello, na Avenida Paulista, que agora pertence à Secretaria Municipal da Cultura, mas durante 27 anos houve um embate judicial com a família proprietária.

Em várias partes do mundo o proprietário de um imóvel tombado fica feliz, pois será indenizado pelo poder público que também sairá lucrando com a utilização cultural ou turística do lugar.

Aqui não, geralmente os donos de um imóvel tombado sentem desespero quando recebem a notícia.

Lembram quando os Matarazzos mandaram demolir o casarão da família na calada da noite, no início da década de 1990?

A empresa de demolição foi orientada para retirar da parede o brasão da família e os jornais publicaram. Tremenda vergonha!

Sobre o centro tão degradado ao que me consta não há por parte da prefeitura, um levantamento efetivo e atualizado do que pode ou deve ser tombado ou mesmo alguma destinação de edifícios para moradores sem teto. 

Ruas do centro seguem ocupadas por centenas de barracas com famílias inteiras e o Projeto Renascer, anunciado pelo atual prefeito parece não ter avançado e ninguém mais toca no assunto.

Fiquei sabendo apenas de um projeto de transformação da Praça Princesa Isabel em um parque. Há também os que querem tombar tudo.



Lembram-se daqueles que defendiam o tombamento pelo Condephaat até mesmo do edifício São Vito, o famoso treme-treme vizinho do Mercadão?

Isto é São Paulo!